As feridas do jovem eram tratadas, e seu estado deplorável e desnutrido lentamente sanado. Ao resgatá-lo das margens do rio, Lina tinha apenas dois objetivos em mente: poupar a vida do rapaz, e poupar aquele remanso da enorme mancha rubra vertida de seus ferimentos. Quem ele era, e a que se devia o ataque que obviamente sofrera? Tais questionamentos nem ao menos começaram a se formar na mente da Sacerdotisa. — “¬ Proteger e nutrir. Ao menos por enquanto.”
Passados dois dias, o rapaz recobrou os sentidos, e o fez de maneira violenta: pulou da cama improvisada, procurando em vão o cabo de sua espada, já a muito perdida.
Perdida, ou entregue as mãos de Ganis
O desespero cobriu sua face e, sem ao menos agradecer, ergueu-se e abandonou o acampamento de sua salvadora. Lina sorriu, na certeza de que seus caminhos voltariam a se cruzar. Dada a vastidão das Águas da Deusa, nada do que é reunido por elas é fruto do acaso. Sem tardar, duas luas após o primeiro encontro, estava o rapaz com novos ferimentos aos pés da Sacerdotisa. Sendo estes mais sérios, Lina resolveu recorrer às dádivas da Deusa para curá-lo, preservando assim sua vida. O rapaz despertara rapidamente, a ponto de poder ver os efeitos do milagre realizado por Lina: seu cabelo flutuava como se estivesse dentro d’água, suas mãos emitiam um pálido brilho azulado e, de todas as direções, se escutava um som de água que misturava músicas de melodia impensável e os sons de uma cachoeira.
Essa visão mudou sua opinião quanto a Lina, fazendo-o agradecer. Lina sentiu, pois planejava que a gratidão, caso fosse dada, viesse de maneira mais espontânea. Volere, que era um rapaz franzino, começou então a tecer sua história.
“¬ — Perdoe a minha ignorância em nosso primeiro encontro. Ele foi, certamente, fruto de uma pressa que ainda tenho, pois minha irmã é cativa de orcos. Eles se separaram, e estão em número de dois agora na guarda, mas ainda assim não fui capaz de vencê-los. Já que me deste a oportunidade de me manter vivo, tentarei pagar avisando que o resto do grupo, três fortes, está patrulhando esta área. E seu acampamento não é discreto.”
Lina sorriu e disse: “¬ — Não temo orcos, portanto não tenho motivos para me esconder. Mas odeio orcos, e portanto eles tem motivo para temer a mim. E, pelo que sinto, eles ignoram este fato.” A Sacerdotisa olhou para uma das paredes de sua tenda, por onde trespassou, sem acertar alvo algum, a lâmina de uma espada. Volere se lançou ao chão, amedrontado pelas vozes dos orcos e seus gritos enlouquecidos.
Então, o som de um rio caudaloso surgiu em crescendo, e então se deu o silêncio. Volere baixou os braços que cobriam seu rosto, e viu que orcos não estavam mais lá. Levou algum tempo para avistá-los ao longe flutuando rio abaixo. Lina passava a mão em seus cabelos, acalentando o rapaz, mas sem conseguir ocultar um leve franzir no cenho. Então disse:
“— ¬Eu o protegi, o alimentei e, agora, mostrei que não deve temer os orcos, e sim a teu próprio medo. No entanto, sua próxima lição é árdua – é onde devo deixá-lo ir. Sei que os orcos se escondem em uma caverna, escondida atrás da cachoeira, na distância de meio dia daqui. Creio ser por isso que você, desacordado, sempre foi trazido pelo rio até o remanso onde estamos. Você atentou bem quanto à localização do esconderijo dos orcos, mas foi relapso no resto da paisagem que a Deusa nos deu para apreciar. Observe tudo mais profundamente, e resgate sua irmã enquanto ainda é tempo.”
Contam os bardos que Volere mergulhou no lago formado abaixo da cachoeira. E, no ápice de seu fôlego e de uma descida de 22 metros, encontrou uma espada única. Outras lendas de bardos versam sobre o casamento de sua irmã, alguns anos depois, e das aventuras de Volere, O Guerreiro da Espada Invisível, caçador de Orcos.
A história da Ordem remonta aos tempos antigos, quando ainda se vislumbrava o esplendor do antigo reino da Moldânia. Neste extenso reino, havia aqueles que moravam mais a norte e que tinham um contato maior e mais direto com as águas de Ganis. Muitos destes tiravam dessas águas a maior parte de seu sustento e não raro o sentido de suas vidas simples, mas felizes. Esses pioneiros foram os primeiros a conhecer, respeitar e amar a Deusa em todas as suas formas. Os escritos datam da fundação da primeira vila ribeirinha ao norte do reino da Moldânia onde hoje é o reino de Conti, quando o primeiro altar dedicado a Deusa das águas, Ganis, foi erguido. O fato é que a fé e a devoção desses humildes pescadores foi crescendo junto com sua vila, artesanato, comércio. A medida que Ganis, como uma mãe zelosa, assumia a vida dessas pessoas e os ensinava a viver, os dias pareciam menos penosos, o corpo material mais satisfeito e as almas, mais iluminadas.
De fato devido ao inegável caráter Matriarcal dessa fé baseada na Deusa, as mulheres desde sempre foram as encarregadas por manterem os altares, bem como a condução das oferendas, agradecimentos e cultos. Normalmente todas as mulheres das vilas tinham esta incumbência, mas com o passar do tempo a mulher mais velha de cada vila passou a ter o cargo de “Portadora da Vontade”, guardiã da fé da deusa águas, o que lhe trazia prestígio e devoção. Com a evolução natural dos povos e das vilas que se multiplicaram sempre amparadas e alimentadas pelas águas de Ganis, aquilo que antes era simples, quase informal e restrito àquela pequena comunidade, tornou-se grande demais. A grandiosidade das procissões, oferendas, festejos, forçaram com que a estrutura hierárquica da fé na figura de suas sacerdotisas também se alterasse e crescesse. Com isso o grande templo de Ganis surgiu e a Sagrada Ordem de Ganis foi fundada sob a tutela matriarcal da Portadora da Vontade e anciã Liturga, onde hoje é a cidade de Muli, a capital do reino de Conti nos dias atuais. Assim, com as bênçãos de Ganis, a vila virou cidade, o altar virou templo, o templo virou Ordem, a Portadora da Vontade da vila se tornou a Sumo Sacerdotisa da Deusa.
Apesar de o reino ainda ser pequeno e pouco desenvolvido, todas as vilas de Conti possuem ao menos um altar em homenagem a Deusa Mãe do reino, onde a fé é passada no melhor estilo de Mãe para filha. A influência da Ordem tem crescido bastante principalmente nos “outros” reinos que devem agradecimentos a Ganis e que vivem de suas bênçãos. A Ordem está mais do que nunca em sua história enviando sacerdotisas e até sacerdotes (fato recente para a Ordem) para os templos espalhados ao longo do mundo, onde essas vão levar as bênçãos, o conforto, o aconchego e as palavras de Ganis.
Esta localização pública da ordem teve conseqüência desastrosa durante a guerra contra seita, e a belíssima construção foi praticamente destruída quando da invasão bandki na região. Foram necessários quase 50 anos para que a lindíssima Catedral dos Mares fosse reconstruída, que coincidente mente marca o fim do império da Moldania e o surgimento de Calco e Conti.
Muitas outras congregações já foram formadas em outros lugares de Tagmar. Estas respondem diretamente a sede da Ordem, mas gozam de relativa independência para a maior parte das suas ações, como por exemplo, a ordenação de novos membros. No entanto não se deve confundir as congregações da Ordem com os demais templos de Ganis. As Ordens não são muitas e se encontram normalmente apenas nas capitais dos reinos mais dependentes do comércio marítimo e em Saravossa, onde todas as ordens mantêm uma congregação.
Relatos recentes chegados a sede da Ordem em Conti relatam a existência de uma possível Ordem de Ganis fundada em Porto Livre, onde os Portinenses (inimigos declarados de Conti) adorariam uma faceta um tanto mais violenta da Deusa das Águas, funcionando então como uma Ordem Militar Náutica com objetivo de formar grandes combatentes marítimos. Aparentemente essa Ordem seria controlada por homens e não por mulheres. Os boatos relatam que essa segunda Ordem seria simbolizada por uma sereia de olhar furioso e dentes pontudos, segurando um tridente em uma das mãos.
Etnicamente a Ordem também é composta em sua grande maioria por representantes do antigo reino da Moldânia, mas esse fato também vem se alterando nos tempos atuais. Por natureza, as Filhas e Filhos de Ganis normalmente são pessoas calmas, serenas e benevolentes sempre dispostas a ajudar e a se compadecer do sofrimento alheio, mas que a exemplo da Deusa podem assumir uma postura extremamente firme e até colérica dependendo da ocasião ou do que estiver em jogo. Todos os seus pertences, de armas a vestimenta, tem como única restrição resistirem e se comportarem de maneira ágil na água. Os mantos e jóias fabricados pela ordem são, por definição, peças feitas para respeitar essa necessidade, mas dificilmente estes sacerdotes encontrarão armaduras que possam sê-lo. Quanto às armas, são preferidas as armas pequenas e leves como punhais, ou longas e retas, como lanças ou tridentes.
Acolherás todos aqueles que buscarem aconchego da Deusa: As Sacerdotisas de Ganis são conhecidas por sua postura maternal de amparo e ajuda para os necessitados que buscam socorro e refúgio das agruras da vida nos Templos da Deusa. No entanto, como ocorre com os organismos aquáticos, é comum que a Deusa ensine aos acólitos o momento certo de aproveitar a liberdade e deter o poder para explorar o mundo. Neste momento, os seguidores deixam a postura de filhos, nutridos e protegidos, e assumem a postura de acolhedores e nutrientes.
Reconhecerás como teus inimigos todos aqueles que afrontarem a Deusa ou seu reino: Com a chegada do reforço masculino, essa faceta da Ordem está ganhando mais e mais força. A pregação, que outrora fora baseada exclusivamente nas virtudes da Deusa, agora se tornara mais ativa, principalmente depois da criação por parte da ordem de várias galeras e navios de guerra. Aqueles mais inclinados a essa realidade marcial justificam a iniciante guinada da atuação da Ordem pela ameaça vinda de Portis e Porto Livre e a necessidade iminente de uma estratégia de defesa da Ordem.
Protegeis o que há de mais secreto e valioso, cedendo apenas àqueles merecedores: Tal como o mar, misteriosos são as Filhas e Filhos de Ganis. Muitos são repositórios de conhecimentos praticamente esquecidos e tesouros lendários. A comparação segue no que concerne a quem será merecedor destes prêmios. Os acólitos desta ordem nunca retém estes conhecimentos para uso próprio, mas se colocam no papel de guardiões e juízes, na seleção dos merecedores de tais fabulosos prêmios.