Arallim, na realidade, fizera bem mais do que rezar – reconhecia e sondava intimamente o mago, enquanto os caminhos subterrâneos se desdobravam infinitamente diante do trio. Fora ela quem praticamente trouxera Sagius dos mortos após o infeliz episódio com o lagarto do gelo. Fora ela quem decifrara as runas que permitiram acesso ao labirinto; e apenas Arallim parecia capaz de apontar com precisão a presença de armadilhas mágicas nesse lugar onde os princípios arcanos pareciam subvertidos por alguma força desconhecida. “Bravo, minha utilíssima sacerdotisa de Palier”, pensou Grindór enquanto com sua mão livre estendia o mapa para mais uma consulta. Outro cruzamento adiante. Uma ligeira troca de olhares e Arallim assentiu com um meio-sorriso. “Sim, mago, é seguro por ali”, lia ele nas feições da elfa, com um misto de alívio e inveja.
Após o que pareceu uma eternidade perambulando pelo emaranhado ambíguo de túneis, chegaram os três finalmente a um salão amplo, circular, de cuja abóbada emanava uma claridade sobrenatural. Ao centro, sobre um sepulcro de mármore rubro, flutuava um volumoso tomo cuja encadernação de metal refletia sinistramente a luminosidade difusa do recinto. Sagius prendeu a respiração, trêmulo. Grindór, com um sorriso estranho nos lábios, fez menção de avançar para o centro do aposento, mas teve o braço seguro por Arallim, que meneava negativamente a cabeça. O mago percebeu, naquele instante, que a sacerdotisa salvara sua vida. “Faça o que é necessário, irmã”, sussurrou então Grindór amargamente, recuando dois passos e descansando sobre o piso empoeirado.
Arallim estendeu lentamente as mãos espalmadas na direção do monumento fúnebre e começou a murmurar um cântico baixinho. Avançava pé ante pé, de olhos fechados. Com cada passo, o ar à sua volta parecia se contorcer e crepitar, enquanto uma profusão de faíscas e espirais de vapores coloridos emanava do assoalho – vestígios inofensivos do volume magnífico de energia mágica sendo sublimado. Em pouco tempo, alcançou o vértice do salão, deitando as mãos suavemente sobre o livro. Houve alguns segundos de silêncio, durante os quais o rosto da elfa expressou curiosidade, sobressalto e apreensão.
Tratava-se, genuinamente, do lendário Tomo de Arminus!
Aturdida pelas revelações do volume, voltou-se para Grindór, em tempo de acompanhar o último gesto do encantamento do mago, que a atingiu com força total. Arallim sentiu o corpo enrijecer e viu-se incapaz de realizar qualquer movimento. Divisou o contorno inerte de Sagius junto à entrada do aposento e seguiu os passos de Grindór com os olhos quando este se dirigiu ao sepulcro e tomou o livro para si.
“Lamento que tenha de terminar assim, irmã”, sussurrou o mago, com um brilho estranho nos olhos, “O segredo de Arminus deve ser meu, e meu apenas!”. Mas quando Grindór sacou a adaga para assassinar Arallim, ouviu-se um rugido: “QUEM OUSA PROFANAR MEU JÁZIGO?”. Em pânico, o mago girou nos calcanhares e disparou rumo ao labirinto, deixando para trás seus ex-companheiros.
No instante seguinte, Sagius erguia-se do chão com um sorriso maroto. Poucos sabiam que aquele intelectual tímido e franzino havia, em sua juventude, dedicado alguns anos ao estudo do ilusionismo. Além disso, a distorcida natureza mágica daquele lugar parecia ter afetado a eficácia dos feitiços paralisantes de Grindór – Arallim já recobrava seus movimentos.
“Perdoe-me, Arallim”, suspirou Sagius, afagando o rosto no lugar onde atingira o chão, “Distraí-me por um instante que poderia ter nos custado as vidas. Tinhas razão, Grindór ficou maluco, não parece o mesmo que iniciou a jornada conosco”.
“Não te aflijas, Sagius”, retrucou Arallim, com um sorriso triste, “Eu já tinha previsto que a sanidade de nosso companheiro sucumbiria às provações da viagem. De qualquer forma, ele não irá longe. Creio que sei exatamente onde encontraremos o seu cadáver”.
“Mas como?!”, engasgou o velho, perplexo.
“A magia deste lugar é poderosa”, explicou a elfa, “Eu jamais poderia dissolver todas as armadilhas do caminho. Limitei-me a suspendê-las, proporcionando uma segurança efêmera – porém suficiente para nossa passagem. Pretendia fazer o mesmo no caminho de volta, e vejo que fiz bem em não divulgar tal detalhe”.
“Mas... o Tomo de Arminus, Arallim!”, interrompeu Sagius, com um acento de pânico na voz, “Ele pode ser danificado, ou pior, destruído!”.
“Tens razão, bom Sagius. Rezemos para que não seja o caso”, respondeu a elfa, tomando a dianteira. Na verdade, Arallim contava com isso. Os restos arruinados do tomo poderiam ser levados ao Templo da Luz e restaurados. Seriam então estudados pelos sábios – e seu conteúdo, protegido de um mundo ainda despreparado para certas revelações. Sentiu apenas pelo fiel e velho amigo, para quem teria que mentir mais uma vez ainda. “Que se há de fazer?”, racionalizou Arallim, “Sagius não entenderia...”.
Para aqueles que pensam que caminhar em sabedoria é algo fácil, se esquecem que, na verdade, não estão caminhando amparados em sua própria sabedoria, mas sim na de outros, uma vez que alguém já teve que cruzar esses caminhos, antes desconhecidos, e torná-los sábios para que muitos possam passar. Para esses sábios que se comprometem em ser “a luz do mundo”, o caminho, sem dúvida, é árduo e sombrio. As trevas sempre tentarão barrar-lhes a passagem, pois que, para os instrumentos dos mundos inferiores, a ignorância é a maior arma para manter os seres cativos. Mas, como que lavradores da mente, esses caminhantes ocultos pelo manto do segredo vão tornando o conhecimento mais assimilável às pessoas comuns, a fim de que o mundo vá, gradativamente, se tornando um lugar mais sábio. Para esses sábios o secreto vai se revelando a cada passo de sua caminhada, e cabe a eles construir estradas firmes para que pés vacilantes possam, no tempo certo, lhes acompanhar a marcha a caminho da sabedoria.
Muito pouco ou quase nada se sabe ao certo sobre a história do surgimento da Ordem. Existem várias versões e a maioria delas, ou todas, poderiam não passar de mera especulação. Das poucas certezas que se tem a respeito da Ordem da Luz, leva-se a crer que a versão mais próxima da verdade relata da existência da Ordem já no período da fragmentação dos reinos da Moldânia, conhecido na Ordem como o “Período dos Lordes”. A mesma versão parece afirmar que a própria guerra civil foi obra da Ordem da Luz e de seus sábios.
Outra versão diz que consta dos arquivos secretos da Ordem, na ata “oficial” de fundação da mesma em Calco, que essa ocorreu logo após a unificação dos reinos, ao término da Guerra da Seita. Consta, também, que seus fundadores foram dois elfos dourados, já bem idosos, para os padrões de sua raça, de nomes Ketalel e Silsanlam , que, especula-se, foram grandes sacerdotes, talvez os maiores sacerdotes de Palier dentro da Ordem.
A história da Ordem nesse ponto volta a se ocultar nas brumas, acidentalmente ou não, e ainda assim deixa a impressão de que durante todo o tempo esteve sempre entrelaçada com a história do País. Especula-se que, tudo quanto Calco é hoje, se deve graças a Ordem e a seus membros que, ao longo da história, vieram manobrando o leme dos acontecimentos.
Os sacerdotes da Ordem da Luz são sábios de raças e classes sociais diversas, devotados à busca, compreensão e repasse de conhecimentos por todo Tagmar. Apesar de a Ordem ser sempre de sacerdotes de Palier, um grande número de não-sacerdotes (inclusive magos) atua como colaboradores. Porém, para que sejam merecedores de tal distinção faz-se necessário que sejam totalmente devotados aos preceitos da Ordem.
Entretanto, existem segredos que precisam ser guardados e situações em que o mero apelo intelectual, semântico e mágico não consegue resolução. Neste ponto entra o “braço armado” da Ordem: Os vigilantes. Os membros de suas fileiras são recrutados dentre os sacerdotes de Palier mais confiáveis e com mais habilidades no manejo das armas. Como o próprio nome sugere, estes sacerdotes atuam como vigias dos templos da Ordem, protegendo santuários (e seus segredos) e executam missões onde a força mais bruta seja necessária.
Os vigilantes envergam couraças parciais muito bem trabalhadas, nas cores verde e dourado. Também carregam um grande escudo quadrado, de corpo inteiro, com o símbolo da Ordem estampado no mesmo. Em suas cabeças, um elmo, adornado com detalhes em alto relevo, completa o seu equipamento de defesa. Em toda a sua armadura encontram-se inscritas runas, cujo significado é conhecido somente dos artesãos da Ordem. Não existem restrições quanto ao uso de armas pelos componentes dos vigilantes, mas acredita-se que elas sejam encantadas com milagres e encantamentos poderosos, tanto que, se alguma delas for perdida ou roubada, os vigilantes empreenderão missões para recuperá-las, utilizando todos os meios necessários para chegarem a tal fim (exceto aqueles que envolvam atos indignos diante dos deuses, óbvio).
Nunca, jamais, sobre quaisquer circunstâncias revelarás os segredos de nossa Ordem: Esse voto, levado muito a sério entre os sacerdotes da Ordem, é de natureza vital para a sobrevivência da mesma e para que ela consiga alcançar seus objetivos. Para tal os membros possuem magias poderosíssimas de bloqueio mental que impossibilitam que suas mentes sejam vasculhadas. Qualquer um que desrespeite esse voto pode aguardar por uma terrível punição.
Sempre procurarás pela verdade e a fará conhecida por todos os teus pares: Um sacerdote da Ordem da Luz é um perpétuo investigador em busca da verdade e do conhecimento, disposto a procurar e desvendar os mistérios envolvidos nas névoas da história do Mundo Conhecido. Ele não se permite deixar que a ignorância impere. Segundo este voto, um membro da Ordem sempre deve compartilhar seus conhecimentos com os outros membros (embora nem sempre isso aconteça fora dos círculos da Ordem, pois a maioria das pessoas de Tagmar não compreenderia a totalidade e a utilidade de tal conhecimento adquirido, ou poderia fazer mal uso do mesmo).
Nunca permitirás que o conhecimento e a magia dos demônios prosperem: Esse voto singular relaciona-se ao uso da magia e da sabedoria para fins demoníacos. Palier abomina a magia advinda dos planos inferiores, bem como a tudo que àquele local se relacione. Seus seguidores devem fazer de tudo para eliminar ou impedir que tais conhecimentos e magias sejam usados. Os sacerdotes de Palier encaram os magos e os demonistas com um ódio pouco visto entre as Ordens.
Juro que buscarei sempre o conhecimento e sabedoria onde quer que eles estejam; que guardarei com sabedoria os meus votos;
Que despenderei qualquer esforço e empreenderei qualquer jornada, que vise o engrandecimento da ordem e a busca de conhecimentos;
Que jamais revelarei qualquer segredo da ordem ou a identidade de seus membros.
Juro que considerarei como meus irmãos de ordem todos àqueles que proferirem este juramento;
Que trabalharei no máximo de minhas forças para que a ordem possa alcançar seus objetivos;
E que se eu quebrar este juramento eu seja privado de todo meu intelecto.
Que todos aqueles que prezam a ignorância e o conhecimento demoníaco sejam banidos para as trevas.
Eu faço este juramento no [dia corrente] e que Palier ilumine meus caminhos e minha mente, para que eu nunca me perca nas trevas da ignorância e do abuso.